sábado, 25 de abril de 2009

A NAVE DOS LOUCOS: O LUGAR DOS CORPOS NÃO-DÓCEIS, EM CLARO, DE GLAUBER ROCHA

Claro (1975) é um filme italiano, idealizado e dirigido por Glauber Rocha, em que se mesclam ficção e documentário na paisagem de Roma. São ilustrados posicionamentos diante da tradição e do novo, passando pelos monumentos que recontam a história do homem até o presente historicizado pela reação popular às manifestações do facismo. Propomos discutir como são constituídos os vários sujeitos na narrativa e seus efeitos de sentido enquanto sujeitos contemporâneos: como são afetados pela memória? Como são afetados pela história? Como criam efeitos de sentido no filme? Que efeitos de sentido esses sujeitos constróem? Que lugar eles ocupam? 
Ainda que procedimentos de documentário e ficção se entrelacem ao longo do filme, é possível dividi-lo em três partes, conforme a abordagem que cada uma delas privilegia: o tratamento mais documental na primeira e terceira partes, o tratamento mais ficcional na segunda. Uma constante, porém, é a presença em cena da atriz francesa Juliet Berto. Em Claro, saltam-nos aos olhos a dramaticidade, a alegoria, o suspense e a paradoxalidade que criam um efeito de superfície, em que os sujeitos se dão a ver e estabelecem uma luta entre essas identidades, que são atravessadas pelas questões sociais e ideológicas. Essa historicidade, em que se unem a tradição e o novo, é constituinte do mundo, dos sujeitos e dos sentidos.
O homem é representado como um ponto de interrogação sobre o mundo. Questiona-se: como se constituiu? O que lhe é intrínseco? Que lugar ocupa no mundo? Qual o comportamento que lhe é esperado? Quais suas razões e dês-razões? Interessa-nos pensar a constituição dos sujeitos a partir da atuação da atriz Juliet Berto, que aparece como corpo de sujeitos díspares e, até certo ponto, opostos e contraditórios criando efeito de multiplicidade de personagens. As rupturas, a dispersão e as descontinuidades entre enunciados ao longo da narrativa se propõem como uma quebra de paradigmas e produz efeito do inusitado, do incomum, tocando os limites do anormal.
Assim, diante do espectador é criado um efeito de loucura do outro lado, isto é, uma ausência de razão. E sob o seu olhar, o louco é uma individualidade singular cujas características próprias distinguem-se daquilo que é encontrável no não-louco, isto é, no indivíduo razoável que é o seu juiz. Para este, o louco é, portanto, o outro, no sentido da exceção, entre os outros.
Situada historicamente, a questão da loucura transita sob vários olhares, sendo um deles o de que louco seria capaz de ver uma verdade que não é alcançável a todo, como Foucault afirma: “Agora, ele é olhado simultaneamente com mais neutralidade e mais paixão. Mais neutralidade, uma vez que nele se descobrirão as verdades profundas do homem, essas formas adormecidas nas quais nasce aquilo que ele é. E mais paixão também, uma vez que não se poderá reconhecê-lo sem reconhecer a si mesmo, sem ouvir subir em si mesmo as mesmas vozes e as mesmas forças, as mesmas estranhas luzes” (Foucault, 1972, p. 537). Esse olhar que promete a contemplação de uma verdade do homem não pode evitar o espetáculo de um impudor que é o seu próprio: não vê sem ver a si mesmo. 
Após circular num roteiro turístico em Roma, temos uma parte ficcional em que sujeitos se dão a ver como identidades socialmente engajadas, trazendo a memória conceitos sociais e ideológicos entre outros. Em outro momento, volta-se aos cenários romanos, agora para aos espaços com suas manifestações: passeatas e comícios comunistas, além de uma exibição de filmes em praça pública. O povo é mostrado em seu cotidiano, onde Juliet Berto ouve uma moradora contar a história do bairro pobre em que vive, foco de resistência política; onde Glauber e Berto entrevistam moradores.
Os sujeitos em Claro, parecem oscilar entre o normal e o anormal, entre uma verdade e uma mentira, entre um esquecimento e uma memória, entre o ordinário e o heróico, entre a coragem e a covardia. Enfim: entre o aceitável e o inaceitável historicamente situados. Questionamos, pois, o que nos é permitido e o que nos é proibido enquanto sujeitos contemporâneos? Quais as resistências possíveis? Que lugar a memória tem em nossas vidas? Até onde nossa memória não exerce um poder sobre nossas emoções e condutas? Seria ela mais um elemento explorado na combinação complexa de técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores?
Continuando num tom realista e intimista, Glauber na cadeia de balanço fala ao telefone e ouve discos brasileiros. Ainda ao telefone, solta frases isoladas: "trabalho de massa"... "a metade do povo é revolucionária"... "claro, claro"... " 

Janaina de Jesus Santos
Mestranda em Lingüística - UFU
Museu Regional de V. da Conquista – UESB

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